.
DESTAQUE:
print this page
Última Postagem:

Função social da cidade

















Os grandes centros urbanos surgem a partir da revolução industrial como um fenômeno da modernidade do século XX. As grandes aglomerações urbanas, geograficamente estratégicas para atender às demandas advindas do novo modelo capitalista que se desenhava, foram dispostas para facilitar a operacionalização do sistema no deslocamento das pessoas para os seus postos de trabalho, bem como ponto de integração dos mercados comerciais e logísticas de serviços e comunicações.

A cidade tem sido objeto de discussão em diversos setores da sociedade, no que tange ao direito do espaço público voltado para proporcionar segurança, qualidade de vida e sociabilidade. É um tema que suscita análises controvérsias, presente no contexto socioeconômico e político sob a égide do sistema capitalista.

A cidade não representa efetivamente o espaço público onde as pessoas possam estabelecer relações sociais de solidariedade recíproca; o espaço onde a convivência possa desenvolver-se na construção de relações afetivas entre os diversos e diferentes núcleos humanos, tornou-se um lugar onde as pessoas formam seus "nichos" sociais, distanciando cada vez mais umas das outras, criando seus próprios mundos de subjetividades.

Diante desse despertar curioso, resolvi trazer para análise reflexiva alguns aspectos que desmontam a ilusão de que a cidade, criada no mundo dos sonhos, seja possível de ser materializada. 

UM OLHAR CONTEMPLATIVO CRÍTICO

Quando ando pela cidade tenho um olhar atento às belezas e contradições que configuram a sua arquitetura topográfica. É na cidade que se vive, portanto, conhecer o que ela nos oferece ou deixa de oferecer é importante para entender como desenvolve a vida dentro da complexidade urbana.

Os passeios pela cidade despertam-me um olhar curioso para os traços arquitetônicos dos monumentos históricos e as construções modernas, criadas pela inteligência e criatividade da engenharia e da arquitetura; praças, ruas e avenidas, tudo isso forma o conjunto urbano, onde passado e presente se misturam projetando uma paisagem urbanística de contornos futurísticos.

 

A vida na cidade, especialmente no nosso país, tem ficado cada vez mais difícil em razão do desencontro que se verifica na maneira como a cidade é governada e os reais interesses de seus cidadãos. É perceptível que o gerenciamento das políticas públicas continua carregado da herança histórica, em que as decisões de governo são tomadas a partir de concepções tecnocráticas influenciadas pelos interesses privados, sem considerar a participação dos cidadãos, principais agentes do processo de formação dos espaços urbanos. Essa desconexão faz com que não sejam capturadas as reais necessidades para tornar a cidade um instrumento de integração social.

 

Percebo que as políticas públicas que deveriam ter como fim precípuo o bem-estar dos cidadãos, infelizmente, continuam privilegiando os interesses privados. É um problema de ordem complexa em que a possível solução esteja no estímulo ao exercício da política participativa, com afirmação dos direitos de cidadania, que possa, através de força normativa, exigir dos governantes a obrigatoriedade de incluir os concelhos comunitários nas decisões que impactam nos destinos da cidade.

 

A política urbana tem suas diretrizes estabelecidas no "Estatuto da Cidade" - Lei 10.257/2001 - que afirma que o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes, de maneira ordenada, é objetivo do Poder Público Municipal, essas diretrizes gerais estão esposadas no artigo 182 da Lei acima mencionada, que, embora estejam instrumentalizadas nos Planos Diretores de Desenvolvimento Urbanos das cidades brasileiras, infelizmente, não são colocadas em prática. Diante disso, somente a população de forma organizada pode pressionar os gestores públicos no cumprimento de tais diretrizes.


CIDADE MAIS DE NEGÓCIOS E MENOS DE DIREITOS 



As grandes cidades, em sua maioria, tornaram-se mais de negócios e menos de direitos, isso em consequência de como são administrados esses centros urbanos. A implementação das políticas públicas, geralmente, cria uma inversão nos direitos dos cidadãos para atender interesses do capital privado.

DANIELLE KLINTOWITZ[2] tem um entendimento de que apesar de os projetos e planejamentos terem como metas os interesses dos cidadãos, a execução desses projetos é desviada para atender interesses outros diferentes daqueles que a cidade necessita (argumentos dos quais compartilho integralmente). Isso ocorre porque os recursos públicos são escassos para implementarem a transformação da cidade em curto tempo, no sentido de que possa ser usufruída por todos. Porquanto as escolhas entre o bom planejamento das políticas públicas e a execução destas recaem sempre na escolha do capital privado, colocando os interesses do cidadão em segundo plano. Todos esses fatores atuam diretamente numa problemática estruturante que gera desagregação e segregação social, retirando da cidade a concepção de espaço sinérgico para construção de relações afetivas e reciprocamente solidárias.


PRIVATIZAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS



É fácil observar que nas últimas décadas ocorreu acelerado processo de privatização de muitos espaços e serviços públicos em Salvador, quer de forma voluntária ou involuntária, que trouxe impactos na qualidade de vida das pessoas. Isso em consequência do avanço do capital privado que se deu principalmente na mobilidade e no uso do solo urbano.

O transporte de qualidade voltado às massas cedeu lugar ao transporte clandestino precário, carente de conforto e segurança, expondo cotidianamente os usuários ao risco de vida.

 

O uso do solo urbano, um tema complexo, em regra, é explorado para construções de corporações de interesses capitalistas. Basta olhar para os “Shoppings Centers", lojas de revendas de automóveis, supermercados, postos de gasolina com suas lojas de conveniência, os grandes condomínios localizados em pontos estratégicos da cidade, etc. Esses empreendimentos, à primeira vista, trazem a sensação de conforto e melhoria da qualidade de vida, entretanto, de maneira subjacente, causam efeitos contrários, além de desconfiguração do paisagismo urbano. 

 


Outro ponto de reflexão é sobre o metrô e o BRT. Esses modais de transporte urbano poderiam ter sido construídos com menor custo financeiro e menos agressão ao meio ambiente. A construção dessas obras é uma demonstração cabal de como os recursos públicos são utilizados visando interesses privados. Soma-se a isso os grandes estacionamentos destinados à exploração pela iniciativa privada, as vias expressas, algumas, inclusive, com pedágio, tudo isso surgiu com o discurso da melhoria da qualidade do serviço que, muitas vezes, não corresponde à realidade fática. 

 

 ABANDONO DO CENTRO DA CIDADE

O centro da cidade perdeu o atrativo como opção de lazer e moradia, tornando-se um espaço quase que exclusivamente voltado para o comércio formal e informal. Esse local da cidade foi, com o tempo, perdendo gradualmente as instalações, outrora, voltadas para a educação, o lazer, a cultura, a gastronomia, etc. Escolas, faculdades, cursos para diversas áreas do conhecimento, cinema, clínicas médicas e odontológicas, escritórios de serviços, casas de "show", restaurantes, etc. que ali se encontravam, não mais existem, ou pouco existe. Esses serviços, na sua maioria, migraram para outras áreas da cidade, onde se concentra a população com maior poder aquisitivo.

 

O poder público, com raras exceções, deixou de ser o fomentador do desenvolvimento do centro antigo da cidade, relocou, dessa área, diversos órgãos públicos que ali se encontravam instalados; desfez de instalações imobiliárias para construção de empreendimentos de interesse da iniciativa privada, muitas vezes, sem contrapartida que garante geração de renda e oportunidades, importantes para a conservação desse espaço da cidade.

 

Um exemplo recente é a venda do colégio Odorico Tavares, situado no corredor da Vitória, um espaço público que há anos se tornou referência na área de educação e instrumento público de integração de classes sociais. Ali, provavelmente, surgirá um empreendimento residencial, ou a conjugação desses dois interesses, criando com isso mais segregação social ao eliminar a oportunidade dos alunos de famílias de baixa renda, que vivem nos bairros circunvizinhos, de usufruir de uma escola pública centralizada, ao serem empurrados para outras regiões periféricas da cidade.

 

Essa lógica que inverte o interesse público em detrimento do capital privado trouxe para o centro um comportamento contraditório, porém explicado pelos princípios do capitalismo. No decorrer da semana, durante o dia, o centro da cidade é um local comercial. Porém ao cair da noite, sobram os moradores de rua e usuários de drogas que circulam pelas praças e ruas, ou ficam deitados  nos passeios, sob as marquises para se  protegerem do sol, chuva, sereno e do frio, expondo o retrato de um sistema urbano em falência.

Essa realidade só  será revertida com a participação efetiva da população nos destinos da cidade. Para isso, será necessário a criação de canais de interlocução que estimulem maior participação das pessoas no processo político, através dos Concelhos Comunitários, Prefeituras de bairros, bem como outras organizações comunitárias, no sentido de que se tenha uma cidade mais equilibrada, onde todos possam usufruir dos benefícios e participar dos instrumentos que a cidade deve oferecer a seus cidadãos.


SEGREGAÇÃO DAS PERIFERIAS


As periferias constituem a extensão territorial e cultural dos centros urbanos. Nelas moram milhares de pessoas que cotidianamente inter-relacionam com os moradores da parte central da cidade. São os prestadores de serviços estudantes, profissionais liberais, artistas, professores, artesãos, etc. que mantém conectividade socioeconômica e política, integrando a cidade na sua totalidade.

Essas áreas afastadas dos núcleos urbanos carecem de maior atenção por parte do poder público, no sentido da execução de projetos de infraestrutura, saneamento, incentivo a geração de emprego e renda, fim compensar as mazelas impostas à população, decorrentes do sistema capitalista perverso.

 

De vez em quando, ando pela periferia para sentir o pulsar da vida nas comunidades dos bairros periféricos. Vou a Piripiri, Paripe, às vezes, à praia de São Tomé, de onde se tem uma das mais belas vistas da cidade do Salvador. Nessas andanças é fácil perceber o tamanho da desigualdade da cidade e o quanto as pessoas são vítimas de um sistema cruel que, ao tempo em que produz riqueza em ponta, gera miséria na outra. Por isso se torna imprescindível a presença do Estado para promover o desenvolvimento d as comunidades periféricas à cidade.


JORGE ABRAHÃO diz ficar assustado de como um país tão rico possa ter uma desigualdade tão grande. Afirma ainda que o que mais  lhe incomoda é perceber que a desigualdade é um processo que vem se acumulando há muito tempo. Para ele, é muito claro que a raiz do problema está na alta concentração de rendas, tese, obviamente, mais que evidente. Basta que se preste atenção para aonde os governos estão direcionando os recursos públicos e quais as prioridades estabelecidas por estes agentes públicos.


A cidade deve ser um espaço de todos e para todos. O sentimento de inclusão e pertencimento da cidade deve estar no comportamento individual e coletivo de toda população urbana, bem como na sua formação cultural. O poder público tem função preponderante no engendramento de ações que visem a integração de obras de infraestrutura para a mobilidade mais eficiente, saneamento básico, saúde, educação, segurança, etc.

 

Nesse sentido, salvador nas últimas décadas deu passos significantes para a integração dos bairros periféricos com o conjunto da cidade. A construção de grandes avenidas, vias expressas e melhorias no transporte de massas por meio do metrô criaram condições para melhorar a integração da cidade. Porém ainda há muito a fazer para atingir os níveis mínimos que caracterizam a cidade como espaço urbano de integração de coletividade e integração social.


CONCLUSÃO

O sentimento e impressões externadas ao longo do texto me convenceram de que uma cidade para se tornar um lugar de bem-estar social é preciso definir as suas prioridades com foco no interesse coletivo. A execução  das políticas públicas, embora não tenha que desassociar do capital privado, não pode permitir a interferência deste nas prioridades das políticas urbanas.

Outro aspecto relevante é a captação de maior volume de recursos para a implementação das políticas de inclusão social, sem deixar de pensar na participação da sociedade no gerenciamento dos recursos direcionados às obras destinadas ao desenvolvimento urbano.

 

Certamente para se ter maior volume de recursos públicos para investir na qualidade de vida dos moradores da cidade seria necessária uma reforma política que desse mais autonomia aos municípios para captação e gerenciamento dos recursos. Isso requer maior participação política da sociedade na escolha de seus legítimos representantes e a cobrança no sentido do cumprimento das suas funções públicas.


Referências:
[1]__Lei 10.257/2001 Estatuto da Cidade. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acessado em 20/05/2020 
[2]__Coordenadora de Projetos de Urbanismo do Instituto Pólis.
[3] __Coordenador-geral do Programa Cidades Sustentáveis e integrante do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para Agenda 2030 - IEA USP

JMiguel
1 comentários

.

 
"
Design: Jmiguel | Tecnologia do Blogger | Todos os direitos reservados ©2012
"