A
vida na cidade, especialmente no nosso país, tem ficado cada vez mais difícil
em razão do desencontro que se verifica na maneira como a cidade é governada e
os reais interesses de seus cidadãos. É perceptível que o gerenciamento das
políticas públicas continua carregado da herança histórica, em que as decisões
de governo são tomadas a partir de concepções tecnocráticas influenciadas pelos
interesses privados, sem considerar a participação dos cidadãos, principais
agentes do processo de formação dos espaços urbanos. Essa desconexão faz com
que não sejam capturadas as reais necessidades para tornar a cidade um
instrumento de integração social.
Percebo
que as políticas públicas que deveriam ter como fim precípuo o bem-estar dos
cidadãos, infelizmente, continuam privilegiando os interesses privados. É um
problema de ordem complexa em que a possível solução esteja no estímulo ao
exercício da política participativa, com afirmação dos direitos de cidadania,
que possa, através de força normativa, exigir dos governantes a obrigatoriedade
de incluir os concelhos comunitários nas decisões que impactam nos destinos da
cidade.
A
política urbana tem suas diretrizes estabelecidas no "Estatuto da
Cidade" - Lei 10.257/2001 - que afirma que o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes, de
maneira ordenada, é objetivo do Poder Público Municipal, essas diretrizes gerais
estão esposadas no artigo 182 da Lei acima mencionada, que,
embora estejam instrumentalizadas nos Planos Diretores de
Desenvolvimento Urbanos das cidades brasileiras, infelizmente, não são
colocadas em prática. Diante disso, somente a população de forma organizada
pode pressionar os gestores públicos no cumprimento de tais diretrizes.
CIDADE MAIS DE NEGÓCIOS E MENOS DE DIREITOS
As grandes cidades, em sua maioria, tornaram-se mais de negócios e menos de direitos, isso em consequência de como são administrados esses centros urbanos. A implementação das políticas públicas, geralmente, cria uma inversão nos direitos dos cidadãos para atender interesses do capital privado.
DANIELLE KLINTOWITZ[2] tem
um entendimento de que apesar de os projetos e planejamentos terem como metas
os interesses dos cidadãos, a execução desses projetos é desviada para atender
interesses outros diferentes daqueles que a cidade necessita (argumentos dos
quais compartilho integralmente). Isso ocorre porque os recursos públicos são
escassos para implementarem a transformação da cidade em curto tempo, no
sentido de que possa ser usufruída por todos. Porquanto as escolhas entre o bom
planejamento das políticas públicas e a execução destas recaem sempre na
escolha do capital privado, colocando os interesses do cidadão em segundo
plano. Todos esses fatores atuam diretamente numa problemática estruturante que
gera desagregação e segregação social, retirando da cidade a concepção de
espaço sinérgico para construção de relações afetivas e reciprocamente
solidárias.
PRIVATIZAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS
É
fácil observar que nas últimas décadas ocorreu acelerado processo de
privatização de muitos espaços e serviços públicos em Salvador, quer de forma
voluntária ou involuntária, que trouxe impactos na qualidade de vida das
pessoas. Isso em consequência do avanço do capital privado que se deu principalmente
na mobilidade e no uso do solo urbano.
O
transporte de qualidade voltado às massas cedeu lugar ao transporte clandestino
precário, carente de conforto e segurança, expondo cotidianamente os usuários
ao risco de vida.
O
uso do solo urbano, um tema complexo, em regra, é explorado para construções de
corporações de interesses capitalistas. Basta olhar para os “Shoppings
Centers", lojas de revendas de automóveis, supermercados, postos de
gasolina com suas lojas de conveniência, os grandes condomínios localizados em
pontos estratégicos da cidade, etc. Esses empreendimentos, à primeira vista,
trazem a sensação de conforto e melhoria da qualidade de vida, entretanto, de
maneira subjacente, causam efeitos contrários, além de desconfiguração do paisagismo
urbano.
Outro
ponto de reflexão é sobre o metrô e o BRT. Esses modais de transporte urbano
poderiam ter sido construídos com menor custo financeiro e menos agressão ao
meio ambiente. A construção dessas obras é uma demonstração cabal de como os
recursos públicos são utilizados visando interesses privados. Soma-se a isso os
grandes estacionamentos destinados à exploração pela iniciativa privada, as
vias expressas, algumas, inclusive, com pedágio, tudo isso surgiu com o
discurso da melhoria da qualidade do serviço que, muitas vezes, não corresponde
à realidade fática.
ABANDONO DO CENTRO DA
CIDADE
O centro da cidade perdeu o atrativo como opção de lazer e moradia, tornando-se um espaço quase que exclusivamente voltado para o comércio formal e informal. Esse local da cidade foi, com o tempo, perdendo gradualmente as instalações, outrora, voltadas para a educação, o lazer, a cultura, a gastronomia, etc. Escolas, faculdades, cursos para diversas áreas do conhecimento, cinema, clínicas médicas e odontológicas, escritórios de serviços, casas de "show", restaurantes, etc. que ali se encontravam, não mais existem, ou pouco existe. Esses serviços, na sua maioria, migraram para outras áreas da cidade, onde se concentra a população com maior poder aquisitivo.
O poder público, com
raras exceções, deixou de ser o fomentador do desenvolvimento do centro antigo
da cidade, relocou, dessa área, diversos órgãos públicos que ali se encontravam
instalados; desfez de instalações imobiliárias para construção de
empreendimentos de interesse da iniciativa privada, muitas vezes, sem
contrapartida que garante geração de renda e oportunidades, importantes para a
conservação desse espaço da cidade.
Um exemplo recente é
a venda do colégio Odorico Tavares, situado no corredor da Vitória, um espaço
público que há anos se tornou referência na área de educação e instrumento
público de integração de classes sociais. Ali, provavelmente, surgirá um
empreendimento residencial, ou a conjugação desses dois interesses, criando com
isso mais segregação social ao eliminar a oportunidade dos alunos de famílias
de baixa renda, que vivem nos bairros circunvizinhos, de usufruir de uma escola
pública centralizada, ao serem empurrados para outras regiões periféricas da
cidade.
Essa lógica que
inverte o interesse público em detrimento do capital privado trouxe para o
centro um comportamento contraditório, porém explicado pelos princípios do
capitalismo. No decorrer da semana, durante o dia, o centro da cidade é um
local comercial. Porém ao cair da noite, sobram os moradores de rua e usuários
de drogas que circulam pelas praças e ruas, ou ficam deitados nos
passeios, sob as marquises para se protegerem do sol, chuva, sereno e do
frio, expondo o retrato de um sistema urbano em falência.
Essa realidade
só será revertida com a participação efetiva da população nos destinos da
cidade. Para isso, será necessário a criação de canais de interlocução que
estimulem maior participação das pessoas no processo político, através dos
Concelhos Comunitários, Prefeituras de bairros, bem como outras organizações
comunitárias, no sentido de que se tenha uma cidade mais equilibrada, onde
todos possam usufruir dos benefícios e participar dos instrumentos que a cidade
deve oferecer a seus cidadãos.
SEGREGAÇÃO DAS PERIFERIAS
As periferias constituem a extensão territorial e
cultural dos centros urbanos. Nelas moram milhares de pessoas que
cotidianamente inter-relacionam com os moradores da parte central da cidade.
São os prestadores de serviços estudantes, profissionais liberais, artistas,
professores, artesãos, etc. que mantém conectividade socioeconômica e política,
integrando a cidade na sua totalidade.
Essas áreas afastadas
dos núcleos urbanos carecem de maior atenção por parte do poder público, no
sentido da execução de projetos de infraestrutura, saneamento, incentivo a
geração de emprego e renda, fim compensar as mazelas impostas à população,
decorrentes do sistema capitalista perverso.
De vez em quando,
ando pela periferia para sentir o pulsar da vida nas comunidades dos bairros periféricos.
Vou a Piripiri, Paripe, às vezes, à praia de São Tomé, de onde se tem uma das
mais belas vistas da cidade do Salvador. Nessas andanças é fácil perceber o
tamanho da desigualdade da cidade e o quanto as pessoas são vítimas de um
sistema cruel que, ao tempo em que produz riqueza em ponta, gera miséria na
outra. Por isso se torna imprescindível a presença do Estado para promover o
desenvolvimento d as comunidades periféricas à cidade.
JORGE ABRAHÃO diz ficar assustado de como um país tão rico possa ter uma desigualdade tão grande. Afirma ainda que o que mais lhe incomoda é perceber que a desigualdade é um processo que vem se acumulando há muito tempo. Para ele, é muito claro que a raiz do problema está na alta concentração de rendas, tese, obviamente, mais que evidente. Basta que se preste atenção para aonde os governos estão direcionando os recursos públicos e quais as prioridades estabelecidas por estes agentes públicos.
A cidade deve ser um espaço de todos e para todos. O sentimento de inclusão e pertencimento da cidade deve estar no comportamento individual e coletivo de toda população urbana, bem como na sua formação cultural. O poder público tem função preponderante no engendramento de ações que visem a integração de obras de infraestrutura para a mobilidade mais eficiente, saneamento básico, saúde, educação, segurança, etc.
Nesse sentido,
salvador nas últimas décadas deu passos significantes para a integração dos
bairros periféricos com o conjunto da cidade. A construção de grandes avenidas,
vias expressas e melhorias no transporte de massas por meio do metrô criaram
condições para melhorar a integração da cidade. Porém ainda há muito a fazer
para atingir os níveis mínimos que caracterizam a cidade como espaço urbano de
integração de coletividade e integração social.
CONCLUSÃO
O sentimento e impressões externadas ao longo do texto me convenceram de que
uma cidade para se tornar um lugar de bem-estar social é preciso definir as
suas prioridades com foco no interesse coletivo. A execução das políticas
públicas, embora não tenha que desassociar do capital privado, não pode
permitir a interferência deste nas prioridades das políticas urbanas.
Outro aspecto
relevante é a captação de maior volume de recursos para a implementação das
políticas de inclusão social, sem deixar de pensar na participação da sociedade
no gerenciamento dos recursos direcionados às obras destinadas ao desenvolvimento
urbano.
Certamente para se
ter maior volume de recursos públicos para investir na qualidade de vida dos
moradores da cidade seria necessária uma reforma política que desse mais
autonomia aos municípios para captação e gerenciamento dos recursos. Isso
requer maior participação política da sociedade na escolha de seus legítimos
representantes e a cobrança no sentido do cumprimento das suas funções
públicas.
[1]__Lei 10.257/2001 Estatuto da Cidade. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acessado em 20/05/2020
[2]__Coordenadora de Projetos de Urbanismo do Instituto Pólis.
[3] __Coordenador-geral do Programa Cidades Sustentáveis e integrante do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para Agenda 2030 - IEA USP
JMiguel
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